quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Cabeça Ruim


Você, que sai para trabalhar todos os dias às oito e quinze em ponto e nem nota as florzinhas que caíram da velha árvore sobre seu carro durante a madrugada. Que desaprendeu a ouvir o vento e não reconhece mais o cheiro de chuva chegando. Que não tem nenhuma fotografia de nenhum amigo de infância.

Você, que cantou parabéns para seu avô calculando o quanto a festa tinha lhe custado. Que gostava de enrolar os dedos nos cabelos da sua mãe para dormir e hoje só dorme direito se estiver sozinho. Que já quis ter um dragão e não deixa seus filhos terem um cachorro.

Você, que puxou o tapete do seu colega de trabalho e depois foi chorar no banheiro, mais por raiva do que por remorso. Que não confessa para ninguém o que lhe dá medo de verdade, com medo da coisa acontecer. Que nem ficou sabendo que o bebê da vizinha já nasceu. Que não deixou sua filha ouvir o moço que tocava violino na rua, para não se atrasar na consulta com o médico. Que não se deu conta do quanto é parecido com seu pai.

Você, que nunca saiu de pijama na rua e não sabe o que é nadar pelado. Que entrava na casa da sua avó e sentia o aroma do pão assando e ia correndo beijá-la, louco de saudade e fome.

Você, que sabe o quanto seu funcionário caprichou no relatório, mas preferiu lembrá-lo dos itens que faltaram. Que veste um sorriso diferente conforme a roupa do freguês. Que não gosta que seus filhos brinquem descalços.

Você, que nunca levou um gatinho para casa e implorou aos seus pais para ficar com ele. Que nunca apertou a campainha e saiu correndo. Que não tira o relógio e nunca tem tempo. Que não percebeu que derrubaram o ipê amarelo da sua rua. Que sonhava em ver um show dos Beatles e hoje nem liga para a coleção deles bem ali, na sua estante.

Você, que nunca andou na contramão. Que não espera seu filho tentar amarrar o sapato sozinho e já vai amarrando por ele. Que não perdia um dia de Vila Sésamo e que hoje se irrita com tudo na TV que não seja noticiário.

Você, que vê o olhar do cão faminto e engole o último pedaço do salgadinho. Que vai de carro a dois quarteirões da sua casa e acha isso normal. Que cruzou com a empregada hoje cedo na cozinha, disse bom dia mas não até amanhã. Que se irrita sempre com o motorista da frente. E com o do lado. E com o de trás também.

Você, que tem barco, mas não tem amigo de verdade. Que quando criança queria viajar numa nave espacial, e hoje diz para seu sobrinho de quatro anos que essas coisas não existem.

Você, que não tem ninguém lhe esperando em casa.

É com você mesmo que eu estou falando. Eu tenho três notícias. A primeira é que seu pé não é doente. A segunda é que sua cabeça é que é ruim. A terceira é que tudo nesta vida tem conserto.

Autora: Silmara Franco


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