Eu não gosto muito de falar sobre assuntos religiosos, principalmente porque a conversa acaba sempre enveredando para caminhos não muito harmônicos. Apesar disso, tenho a minha crença e respeito a dos outros. Porém, achei interessante a entrevista concedida pelo professor de estudos religiosos da Carolina do Norte, Bart Ehrman, à revista Época desta semana, na qual debate as contradições dos evangelhos bíblicos.
Apesar de não ser uma estudiosa da Bíblia, sempre vi contradições em seus textos. A maior delas diz respeito às inúmeras traduções feitas ao longo dos séculos, nas quais muitas coisas se perderam ou foram deturpadas pelos tradutores. Outra, é o fato de que os livros foram escritos muito tempo depois da morte de Jesus Cristo e, em alguns casos, por pessoas que não viveram a história. Aí eu pergunto: como garantir a integridade dos fatos se não estiveram presentes ou, ainda, passados tantos anos?
Diferentemente de mim, ou de algumas pessoas que conheçi, que adoram falar de coisas que não estudaram, Bart Ehrman cresceu em uma família religiosa e, quando adolescente, havia se tornado um evangélico fervoroso. O interesse pela Bíblia e por sua história o acompanhou a vida toda e hoje, após 35 anos de estudo, diz ter abandonado o Cristianismo por não acreditar que Deus poderia estar no “comando de um mundo cheio de dor e sofrimento”.
O professor de estudos religiosos já escreveu 21 livros sobre religião, incluindo Verdade e Ficção em O Código Da Vinci, sobre o best-seller de Dan Brown, e O que Jesus Disse? O que Jesus Não Disse? – Quem mudou a Bíblia e por quê, que figurou entre os mais vendidos na lista do jornal The New York Times.
Agora, em sua última publicação, Jesus, Interrupted (ainda sem tradução), que será lançado no Brasil no segundo semestre, Ehrman tenta revelar as contradições da Bíblia, que provam, segundo ele, que o livro não foi enviado à humanidade por Deus. E afirma que apenas oito dos 27 livros no Novo Testamento foram escritos pelos autores aos quais são atribuídos.
Há trechos muito interessantes na entrevista, como o que ele fala sobre o fundamentalismo cristão, segundo o qual "uma pessoa só pode ser critã se acreditar totalmente na Bíblia"; ou qual o melhor caminho para se chegar a Deus: a Fé ou as boas ações; ou ainda sobre as discrepâncias da Bíblia sobre "quem foi Jesus Cristo".
Veja abaixo a entrevista na íntegra:
Época – De um tempo para cá temos visto um crescimento do número de títulos com críticas às religiões. O que está motivando os leitores?
Bart Ehrman – Há uma reação contra a direita conservadora do mundo religioso. Aqui nos Estados Unidos há vários líderes desse tipo que tiveram muita atenção da mídia por muito tempo, e as pessoas que estão do lado esquerdo deste espectro começaram a se incomodar. Muitos desses livros escritos por essas pessoas chamadas de "neo-ateístas" são uma representação deste movimento.
Época – Alguns dos principais representantes do "neo-ateísmo" são Sam Harris e Richard Dawkins. Em um artigo recente da revista Time, o senhor reconheceu que compartilha leitores com eles. Mas o senhor se considera parte deste movimento?
Ehrman – Não me considero um ateu e não acho que estou fazendo a mesma coisa que esses autores. Eles têm feito coisas boas, mas estão atacando a religião sem conhecer muito. Quando eu escrevo, faço isso como alguém que já esteve profundamente envolvido com a Cristandade, mas que agora a rejeitou. Por isso, a minha perspectiva é completamente diferente.
Época – O que fez o senhor passar de um fiel cristão a um “agnóstico feliz”?
Ehrman – Fui criado na Igreja Protestante e fui um cristão muito ativo por vários anos. Mas eu deixei a cristandade não por conta dos meus estudos históricos sobre a Bíblia, mas por não conseguir mais acreditar que poderia haver um deus no comando deste mundo cheio de dor e sofrimento.
Ehrman – O título significa que há inúmeras vozes diferentes falando no Novo Testamento. São autores diferentes, que possuem pontos de vista diferentes e que, muitas vezes, são conflitantes. Com tantas vozes assim falando no mesmo livro, muitas vezes é impossível escutar a voz do Jesus histórico, porque ele foi interrompido por outras pessoas.
Época – E é possível definir qual é a maior contradição da Bíblia?
Época – E é possível definir qual é a maior contradição da Bíblia?
Ehrman – São muitas discrepâncias, mas é possível destacar duas. O apóstolo Paulo, por exemplo, acha que a pessoa chega a Deus apenas pela fé, e não pelo que faz. No capítulo 24 de Mateus, no entanto, nós lemos que boas ações levam ao reino dos céus. Essas duas visões são excludentes em um assunto determinante, que é a salvação. Também há visões diferentes sobre quem era Jesus. No evangelho de João, Jesus é Deus, mas nos textos atribuídos a Marcos, Mateus e Lucas não há nada sobre isso. No evangelho de Mateus fica claro que ele acredita que Jesus é um ser humano, e que é o Messias. A Igreja acabou juntando essas duas visões, de que ele é humano e divino, e criou um conceito que não está escrito nem em João e nem em Mateus.
Época – O senhor acha que essas discrepâncias fazem da Bíblia uma história falsa?
Ehrman – Eu diria que os diferentes autores da Bíblia tem versões diferentes da história e por isso é errado tentar fazer com que eles digam a mesma coisa. Há muitos erros na Bíblia e, mais importante que isso, há diferentes pontos de vista teológicos e isso precisa ser reconhecido.
Época – Desde quando a Bíblia começou a ser questionada? De que maneira isso enfraquece a Cristandade?
Ehrman – As pessoas só começaram a notar essas diferenças na época do Iluminismo, no século XVIII. Antes disso, os estudiosos da Bíblia eram teologicamente comprometidos com ela e não imaginavam que poderia haver erros. Essas descobertas são problemáticas especialmente para quem acredita que a Bíblia foi entregue a nós diretamente por Deus. Se isso ocorreu, por que não temos a Bíblia original? Por que temos apenas manuscritos escritos mais tarde e que não são iguais? Essas diferenças mostram que não existe um livro com inspiração divina que foi entregue a nós.
Época – E como isso afeta especificamente a Igreja Católica?
Ehrman – Existem estudiosos na Igreja Católica que concordam com quase tudo o que está escrito em Jesus, Interrupted. Mas na tradição católica a fé nunca foi sobre a Bíblia, mas sobre os ensinamentos da Igreja e sobre acreditar que Jesus é o filho de Deus. E isso não muda se a pessoa perceber ou não os erros da Bíblia. É bem diferente do fundamentalismo cristão que é tão poderoso onde eu vivo, no sul dos Estados Unidos. Aqui as pessoas acham que você só pode ser cristão se acreditar totalmente na Bíblia.
Época – Alguns críticos do seu trabalho, especialmente o líder evangélico James White, dizem que você quer destruir a fé cristã. O que você acha disso?
Ehrman – Estou tentando destruir o tipo de fé cristã de James White! (risos). Mas na verdade nada que eu faça pode destruir o Cristianismo. O problema é que há um certo tipo de fé cristã que diz que a Bíblia não tem erros e é infalível, e eu não concordo com isso. Eu não sou o único que pensa assim. As opiniões que estão descritas no meu livro são as mesmas da maioria dos estudiosos da Bíblia há muitas e muitas décadas, mas eles não costumam falar disso em público. Meu livro apenas pega o que os estudiosos dizem há muito tempo e torna disponível para os leitores normais.
Época – Você recebeu muitas críticas de leitores por conta do livro?
Ehrman – Recebi e-mails de pessoas bravas e sei que na internet há muita gente contrariada. Dizem que quero destruir sua fé, que sou o anti-Cristo. Mas a maior parte dos que escreve ficou grata pelo livro e feliz por eu ter dito essas coisas, já que suspeitavam desses erros, mas não tinham base teológica para questionar a Bíblia.
(fonte Revista Época)
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